4/07/2021

Falemos da morte

Em abril de de 2019 eu escrevi um artigo sobre a morte. É hora de revisitá-lo, usar uns trechos, editar outros. É tempo de pensar na morte, é tempo, há tempo de falar sobre a morte. Antes, porém, o que é a vida? A doutrina católica nos ensina que a morte é a passagem para vida eterna. Será verdade? Não conheço ninguém que tenha voltado para contar se é, de fato, verdade (contêm ironia).

Antônio Abujamra perguntava, provocativamente, aos seus entrevistados: como você quer morrer, com aquele negócio assim, no nariz? Dizia também: nós temos que idolatrar a dúvida. E deixava filósofos, doutores, políticos e estudiosos embaraçados quando não conseguiam responder: O que é a vida?

E eu vos pergunto: Como quereis morrer? 
Certeza? 
Só uma: Sim, iremos morrer. 
Dúvida? Dúvidas... várias! 
Como... Quando... Onde... Por que...

O Cantor e compositor Fernando Anitelli diz que: os opostos se distraem e os dispostos se atraem. Ele está certo. As pessoas dispostas se atraem para fazer uma festa, para fazer um show, para fazer um avião, para fazer um sarau. Os dispostos se atraem para matar, meus amigos, até para matar, neste momento pandêmico, os dispostos se atraem para se aglomerar. E disso, ninguém tem culpa, nem o coitado do presidente, no qual eu não votei. Ou tem? 

Mas morte é sempre morte. E sabe o que é o pior? É que eu estou sujeito a isso também. Eu, tu, ele, nós, vós, eles, todos estamos sujeitos a morrer, a qualquer momento, por um acidente de trânsito, por uma parada cardíaca, por uma bala perdida, ou até por um desentendimento na fila do supermercado. 

O fato: viver é duelar com a morte. E ponto.

Já faz alguns anos que Marcos Vitor nos deixou. Lembro que ele morreu num domingo. Um cara, tão inteligente como ele, resolveu secar o porão da sua casa acendendo algumas lenhas. Faltou oxigênio. Eu o conhecia, trabalhamos juntos. Ele era muito safro, dedicado, referência técnica, já havia sido supervisor do time de projeto de sistemas elétricos. Era um cara prestativo, apaixonado pela família e nato tirador de sarro. Seu velório estava repleto de colegas de trabalho, amigos, familiares e todos como a mesma dúvida: Por que ele foi duelar daquela maneira com a morte?

Também trabalhei com a Fernanda Cunha, filha do Robertão, no time de projeto de interiores do Legacy 600. Ao que parece, ela morreu por negligência médica, por uma consequência de falhas. Foi uma morte totalmente fora de hora, fora de contexto, deixou dois filhos, um deles recém-nascido. Seu velório ocorreu num sábado de carnaval. Quando uma mãe morre jovem e deixa filhos pequenos é um acontecimento que nos leva a repensar toda nossa existência.

Alírio foi meu colega de faculdade. Ele e a esposa, Tati, morreram após um caminhão, que foi atingido por outro caminhão, atravessar a pista e colidir, frontalmente, o veículo em que estavam na pista contrária na rodovia Ayrton Senna. Morreram na hora. Deixaram um casal de filhos. Não houve, sequer, tempo ou tentativas para despedidas. Isso foi há poucas semanas, então nem tiveram um velório com a presença dos amigos e colegas.

Seu Galdino era um daqueles homens que parecem eternos. O conhecia de longa data. Esposo da Dona Sônia, pai do César, Celso, Carlinhos, Cleonice, Soneca e outros filhos. Morreu aos 80 anos. Passou mal ao levantar da cama, bateu a cabeça, deu entrada no hospital mas saiu de lá um dia depois e sem vida. Já havia tomado a vacina contra o novo coronavírus. Venceu o vírus, mas não venceu a queda.

Meu primo, Luiz Henrique, morreu há dois anos, vítima de acidente de trânsito após o capotamento do carro onde estava, na Serra da Mantiqueira. Morreu na hora. Uma tragédia. Uma vida interrompida abruptamente. Simplesmente, acabou. Sonhos, interrompidos. Luto de pai e mãe talvez seja um dos momentos mais árduos na vida de um ser humano.

Caso vençamos as hipóteses de morte por acidentes e catástrofes, ainda nos resta morrer por um vírus: Coronavírus. Antes de duelar com a morte, temos que duelar com este vírus e esta nossa batalha já está beirando a insanidade.

Trabalhei com Daniel Sousa, também no programa Legacy 600. Ele era um cara adorado por todos, estava sempre disposto a ajudar o próximo. Era meu vizinho de rua, sempre que nos encontrávamos, recordávamos histórias da Embraer. Daniel era pastor, pai, esposo, avô e pequeno empresário. Daniel não resistiu ao duelo com o coronavírus e faleceu no início da pandemia, ano passado.

Semana passada, no fim de um dia comum de trabalho, recebemos a notícia que o nosso colega, Douglas Ribeiro, havia falecido devido as complicações do covid-19. Não pudemos nem ir ao velório por conta de toda esta situação. Douglas Ribeiro, vulgo Douglão. Eu o conhecia, trabalhamos juntos no segundo turno do suporte a produção dos jatos comerciais do E195E2. Morreu um CPF, uma CHAPA da empresa, um pai de dois garotos, um marido, um amigo, um colega de trabalho, um projetista aeronáutico de sistemas elétricos. Eu o conhecia e chorei ao saber que morreu por covid-19. Douglão tinha 42 anos de idade e 19 deles dedicados à Embraer. 

Das muitas perguntas sem respostas, eis algumas delas:
Por que a morte escolheu Douglão para morrer por covid-19?
Por que a morte escolheu Daniel para morrer por covid-19?
Por que a morte escolheu, só hoje, mais de 4.200 (quatro mil e duzentas) pessoas para morrer por covid-19?

A Semana Santa passou e um dos meus devaneios foi pensar que Jesus nos deixou um grande ensinamento: morrer jovem pode significar, sim, viver intensamente. Viver trinta e poucos, quarenta, anos pode significar tempo mais que suficiente para realizar grandes obras, pode significar ser tempo suficiente para ser marcante, importante e significativo na vida das pessoas. Talvez seja um bom parâmetro de qualidade de vida e não de quantidade de vida. E o nosso choro pode ser o choro de Verônica, afinal, não há dor maior que a nossa dor diante dos nossos mortos e Maria, aos pés da cruz, pode ser as mães dos nossos falecidos. Por que, não?

Mas isso tudo, todas essas mortes, deve servir para alguma coisa. Isso tudo tem que ter um porquê. Não é possível que tenhamos que conviver com este medo de viver... ou é? Até quando? O confinamento é tão grande que não podemos nem ficar na praça dando milho aos pombos.

Tentemos ser uma semente do bem neste caos que estamos vivendo. Que a poesia, a literatura, a música, a cultura e a educação prevaleçam e sejam nossas armas de combate nesta guerra social. Então, eis a minha humilde sugestão: Armemo-nos com livros (e blogs bons, não este) para que livremo-nos do mal. Enquanto há vida, há esperança. Enquanto há livros (e blogs bons, não este), há sonhos.

Grande abraço,

Eduardo Caetano